As favelas do Rio de Janeiro são como um “bunker” para traficantes de todo o país. Redutos do Comando Vermelho (CV) e Terceiro Comando Puro (TCP), abrigam integrantes de diversos estados, principalmente as lideranças, procuradas pela polícia. Desta forma, refugiados fazem dos morros um ‘home office do crime’, onde coordenam as ações, como o tráfico de drogas e armas, a execução de inimigos e até extorsão a comerciantes em seus estados de origem. Pelo menos cinco chefes dessas organizações que atuam na Bahia foram rastreados lá, de acordo com uma força-tarefa liderada pela Polícia Federal baiana.
“Na Rocinha, movimentava milhões. Numa dessas transações, de uma só vez, ele negociou a venda de 200 pistolas para aqui. Foi preso em Lauro (de Freitas). Achava que estava tudo tranquilo, ‘de boa’ e a gente pegou. Estávamos há dois anos na cola dele”, diz um agente que participou da operação integrada com a participação da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) da Polícia Federal, Ministério Público da Bahia (MPBA), da Polícia Militar da Bahia, além da Força Integrada de Combate ao Crime Organizado na Bahia (FICCO) da Polícia Civil da Bahia (PCBA).
O agente não deu detalhes da prisão e nem onde ele está detido, mas disse que o Barão do Tráfico é um articulador. “Muitos desses armamentos pesados chegaram à Bahia com o crescimento do Comando Vermelho no estado. No caso dos fuzis, boa parte da carga é fabricada no Leste Europeu e, posteriormente, vendida para a América Latina. O Paraguai, o exportador mais próximo do Brasil, envia para o Rio, que faz a redistribuição. Rodolfo é quem trata de todo o esquema”, explica a fonte.
Entre outras negociações de Rodolfo está um carregamento com 25 armas do CV, incluindo fuzis, apreendido no sudoeste baiano, que foi o fio do novelo para o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) chegar a uma das rotas de tráfico internacional de armas no Brasil. A ação deu origem à operação Dakovo (leia detalhes abaixo). “Foi em Vitória da Conquista. Mesmo com o código de série raspado, usamos uma tecnologia que fez o cruzamento de dados e foi possível mapear a trilha da compra de fuzis no Leste Europeu”, conta a fonte.
Após perícia técnica, foi identificado que todas as armas tinham origem de uma empresa importadora do Paraguai, que comprava armamento da Croácia, Eslovênia, República Tcheca e Turquia, e revendia para facções brasileiras. Há indicativos de participação de doleiros e empresas de fachada dos Estados Unidos no esquema.
Não foi a primeira vez que Rodolfo acabou detido. Em 25 de novembro de 2020, ele foi preso em um dos apartamentos do edifício Mansão Ilha de Delfos, no Alto do Itaigara, um dos endereços mais caros da capital baiana. À época, ele ofereceu R$ 100 mil aos policiais militares, que recusaram. Ele foi surpreendido enquanto dirigia um Audi A5. Os policiais foram até o apartamento dele e encontraram porções de skank e haxixe, além de anotações do comércio de entorpecentes e armas. Além disso, R$ 58 mil foram apreendidos.
“Cabeça-cara”: Rodolfo estava na Rocinha mandando armas e drogas para a Bahia Crédito: Reprodução
Buel
Outro integrante da cúpula do CV na Bahia escondido no Rio de Janeiro é o temido Anderson Souza de Jesus, conhecido como Buel, Cris ou Esquerdinha. A informação inicial é que ele está no Complexo da Maré, que compreende um conjunto de 17 comunidades onde moram cerca de 140 mil pessoas – a região margeia a Baía de Guanabara e está localizada entre importantes vias rodoviárias que cortam a cidade do Rio de Janeiro.
Buel é responsável pela onda violência nos bairros de Tancredo Neves, Arenoso e adjacências, com ataques ao arquirrival Bonde do Maluco (BDM). Em agosto deste ano, seu rosto foi estampado na carta “Rei de Copas” do Baralho do Crime – ferramenta que incentiva a denúncia de criminosos. Ele é procurado por tráfico de drogas e associação para o tráfico.
Na atualização do baralho, a Polícia Civil informou que Buel, além de dominar a venda de entorpecentes em várias localidades da capital baiana, também é mandante de dezenas de homicídios.
Em junho de 2017, ele foi preso em flagrante pelo uso de documento falso pela Polícia Civil, após apresentar uma Carteira Nacional de Habilitação (CNH) em nome de outra pessoa para receber atendimento na unidade de saúde, depois ser baleado no confronto.
Buel estaria na Rocinha é é procurado por tráfico e associação para o tráfico Crédito: Reprodução
Lacoste
Mas não é só o CV que dá guarida aos comparsas baianos. O traficante Jeimes Cassiano Lisboa, de 26 anos, o Lacoste, foi preso no dia 10 de outubro deste ano no Complexo de Israel. A comunidade é dominada pelo Terceiro Comando Puro (TCP), segunda maior facção criminosa do Rio. O complexo é a junção de cinco favelas: Parada de Lucas, Vigário Geral, Cidade Alta, Pica-Pau e Cinco Bocas. Juntas, as comunidades totalizam cerca de 130 mil moradores.
Lacoste possuía dois mandados de prisão em aberto e é apontado pela polícia como o principal mentor do ataque que resultou na morte do tenente da Polícia Militar da Bahia, Mateus Grec, em setembro de 2021, no bairro de Cosme de Farias, em Salvador. Lacoste é liderança da facção baiana BDM, que tem aliança com o TCP, pois ambos têm o mesmo inimigo: o CV. Segundo a polícia, ele começou como assaltante de banco. Nascido em Cosme de Farias, foi expulso do bairro, ocasião em que migrou para o tráfico de drogas e passou a comandar ataques a tiros em Salvador.
Tutuca
Lacoste era parceiro de Denilson Sales Neves, o Tutuca, o 10 de Ouros do Baralho do Crime, que também teve o mandado de prisão cumprido no Rio, em agosto deste ano. Ele estava na comunidade de Santa Teresa, bairro tradicional da cidade, que enfrenta problemas de favelização, principalmente em suas encostas. Ao todo, são 20 comunidades fincadas na região e em áreas vizinhas. A região é controlada pelo TCP.
Liderança do BDM, Tutuca estava em Santa Tereza, comunidade do TCP Crédito: Reprodução
O criminoso lidera a facção criminosa BDM, no bairro de Pernambués, em Salvador, na região da Baixa do Manu. Do Rio de Janeiro, o traficante enviava drogas, armas e munições, além de determinar assassinatos de rivais, roubos, entre outros delitos.
A prisão dele foi uma operação de inteligência e integração entre as forças da Segurança Pública baiana e carioca.
Robson
Quando estava no BDM, ele foi passado para trás pelos comparsas e mudou de lado, tornando-se um dos homens mais cruéis do Comando Vermelho (CV) no Brongo, no bairro do Engenho Velho de Brotas. Ele passou a frequentar o Rio de Janeiro, onde em 2021 foi preso numa comunidade em Cabo Frio, município carioca, onde o tráfico é disputado pelo CV e TCP.
Lá, ele foi condenado por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Já na Bahia, em 2018, Robson tentou subornar um policial com R$ 18 mil. A operação que terminou com a morte dele teve participação de agentes Salvador e de Valença – há suspeita de que promoveria uma parceria entre o CV e outros traficantes do Recôncavo.
Outros nomes na lista da força-tarefa não foram revelados para não comprometer as investigações.
Robson foi assassinado na Avenida Centenário, logo após chegar do Rio de Janeiro Crédito: Reprodução
Refugio em morros cariocas já existe há bastante tempo
A migração de traficantes para os morros cariocas, não é de agora. Essa ida já dura cerca de 20 anos. Além da Bahia, são criminosos foragidos do Pará, do Amazonas, do Acre, de Rondônia, do Ceará, da Paraíba e do Rio Grande do Norte.
“Essa relação do Comando Vermelho com traficantes de outros estados não é recente, ela já existe há muitos anos. É uma aliança entre ‘donos do morro’. Esses traficantes que vêm de outros lugares e ficam alojados em residências cedidas pela organização e claramente atuam enviando ordens para outros estados assim como também ocorre toda essa movimentação em sentido inverso, traficantes do Rio de Janeiro que estão em outros estados e comandam seus negócios a partir desses lugares”, declara Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Para o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Victor dos Santos, a situação é explicada na ocupação desordenada da cidade . “Precisamos considerar a expansão do Comando Vermelho, que se transformou em uma organização criminosa nacional. A densidade demográfica do Rio e a quantidade de favelas, são mais de 1,7 mil, com a desordem urbana, facilita o abrigo dos criminosos”, esclarece.
Mas segundo Hirata, esse fenômeno é chamado de “nacionalização das facções”. “Há baixíssima integração na área de inteligência e de informações sobre esses grupos no Brasil, ações policiais estaduais, geralmente, não compartilham informações – mesmo dentro das forças policiais do mesmo estado. Isso é uma questão delicada. É aquela percepção de que a informação é poder, isso acaba impedindo essas comunicações e acho que esta é a principal causa de nós vermos nessa situação”, aponta.
No entanto, outros representantes das forças de segurança do Rio atribuem à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como ADPF das Favelas, o fortalecimento desses esconderijos. Ajuizada em 2019, trata-se de uma ação para reduzir a violência policial.
“Não há nenhuma possibilidade de relação entre essa ação e essa situação, que tem muito mais a ver com a dinâmica do crime. As operações policiais ocorrem no Rio de Janeiro como sempre ocorreram, só que agora elas estão mais seguras. A situação está relacionada com o sistema prisional e a baixíssima integração das forças policiais no Brasil”, rebate Hirata.
O CORREIO procurou o Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), que, por sua vez, informou que a reportagem deveria procurar o Gaeco do Ministério Público da Bahia (MPBA). Por meio de nota, o MPBA disse que “monitora a atuação de organizações criminosas no estado e realiza investigações para combater as facções, inclusive com deflagração de operações conjuntas com as demais agências de inteligência e forças policiais do estado”.
“De 2023 até agora, foram realizadas 26 operações contra facções criminosas, inclusive contra suas lideranças, com cumprimento de 36 mandados de prisão e 132 de busca e apreensão. Foram apreendidos 142 aparelhos eletrônicos e 51 materiais bélicos.O monitoramento dos grupos criminosos tem se intensificado, com constante discussão para aperfeiçoamento das ações de combate à criminalidade organizada. No último dia 6 de junho, o MP debateu o panorama do enfrentamento às facções com integrantes dos sistemas de Segurança Pública e Justiça da Bahia (https://www.mpba.mp.br/noticia/72996)”, diz a nota.
O MPBA informou ainda que “as investigações e as linhas de atuação são estratégicas e sigilosas em favor de sua efetiva execução”.
A reportagem procurou também a Secretaria de Segurança Pública (SSPBA) e a Polícia Civil da Bahia (PCBA). Até o momento, não há respostas.
Operação Dakovo tem início na Bahia e rota de tráfico de armas é descoberta
A apreensão de 25 armas, entre elas fuzis, no sudoeste baiano fez o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) puxar o fio do novelo de uma das rotas de tráfico internacional de armas no Brasil, dando origem à operação Dakovo. “Foi em Vitória da Conquista. Mesmo com o código de série raspado, usamos uma tecnologia que fez o cruzamento de dados e foi possível mapear a trilha da compra de fuzis no Leste Europeu”, conta a fonte.
Após perícia técnica, foi identificado que todas as armas tinham origem de uma empresa importadora do Paraguai, que comprava armamento da Croácia, Eslovênia, República Tcheca e Turquia, e revendia para quadrilhas brasileiras. Há indicativos de participação de doleiros e empresas de fachada dos Estados Unidos no esquema.
Em dezembro do ano passado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) apresentou o resultado da operação, realizada em conjunto com o governo do Paraguai – alvo da força-tarefa é uma quadrilha suspeita do envio de 43 mil armas entre 2019 e 2022 para as maiores facções criminosas brasileiras.
Operação da Polícia Federal Crédito: Divulgação/Polícia Federal
Ao todo, foram expedidos 19 mandados de prisão (cinco no Brasil e 14 no Paraguai) e 38 mandados de busca e apreensão no Brasil, Paraguai e Estados Unidos. Na operação, também foram bloqueados R$ 66 milhões em bens e valores no Brasil, para identificar a lavagem de dinheiro oriunda de rede ilegal.
Ainda segundo o MJSP, desde o início das investigações, a empresa investigada movimentou, em três anos, cerca de R$ 1,2 bilhão. Neste período foram realizadas 67 apreensões que totalizam 659 armas apreendidas no território brasileiro, em dez estados: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia e Ceará. A investigação prossegue, visando mapear toda a cadeia criminosa.